sexta-feira, 30 de abril de 2010

O antebraço

Inicia-se na dobra que distingue sua brutalidade nata de seu desprezo pelo que julga subimportante, impotente, doce. Em veias sobressalientes correm seus desejos doentis. Para que dois braços se sequer é capaz de dar um abraço? Um já lhe seria justo.
Nascem dessa subforça seus pelos marrons, negros e dourados. Lisos, talvez profundos. Nas profundezas são abrigados seus bulbos. Um pequeno bulbo gorduroso de onde emina toda a pelagem e todo o odor. Seriam eles pequenos bulbos de cebola subcutâneos?
Observo em sua extensão várias pintas. Na parte inferior, três se destacam pelo contraste com a cor menos bronzeada da pele.
A primeira: Provavelmente a maior - provavelmente motivo de orgulho. É também a mais distante das mãos. Analisei-a de perto. Perfeitamente esférica, limpa. Chegava a ser charmosa. Talvez uma herança da genética meiga que lhe fora recusada pelo espírito medíocre.
A segunda: Repugnante. Disforme. Imagino que um dia sua vaidade lhe faça arranca-la. Ou talvez sua preocupação com a saúde. Nela há dois bulbos: um grande, central, de qual brota um grande pelo negro, possivelmente retirado esporadicamente. Um menor, próximo ao central, praticamente insignificante. Se os olhares não se destinassem ao anterior, dificilmente este seria notado.
A terceira: bastante próxima à mão, era a de cor mais suave. Sequer sei julgar se era uma pinta ou uma mancha. Localiza-se sobre uma das veias sobressalientes do pulso. Era esta a responsável pelo juízo de não cortar-se com a navalha nos momentos de angústia?

Quase formavam as três marias, se não fosse por um pequeno desvio da terceira em relação ao eixo formado. No entanto, a linha construída por tais quase acompanhavam as linhas de fluxo sanguíneo. Um dia abrirei o antebraço para descobrir.
No pulso, veias e artérias, cruzelíneas, prestes a explodir. Mimetismo da força apenas aparente. Destinam-se finalmente a irrigar suas mãos, aparentemente mais humanas, sobre as quais escreverei em uma ocasião mais oportunua.

Maria.

sábado, 24 de abril de 2010

De vita et somnium.

[Para Sku,
que mantenha o sorriso no rosto e o brilho nos olhos.]

Essa é a história de João.

João de Deus nasceu num bairro pobre da interiorana Marília. Pai desconhecido, mãe adolescente, avós desempregados. Que mais podia ele sofrer na vida? A vida é por si um sofrimento, dizia Dona Coralina, do casebre vizinho. Talvez ela tivesse razão. Embora, para o menino, ela estivesse redondamente equivocada. Fato que era velha e, como todo velho, devia saber mais sobre a vida. Mas ele era criança. E, como toda criança, sabia mais sobre os velhos. Antes disso, pensava que a vida é aquilo que vivemos.
Crianças, esses ignorados grandes filósofos da humanidade.
Um dia resolveu que queria porque queria saber quantos paralelepípedos constituíam a rua de sua casa. Nem sabia pronunciar o nome daquelas pedras quadradas, mas queria contá-las. Principiou, ajoelhado na poeira sob ardentes sóis, a difícil tarefa. Contou um por um, devagar, com cuidado para não pular os menores paralepi... parapile... pedras. Quando estava lá pela sexta fileira, sua mãe o convocou ao jantar. Mas que hora ingrata! Cessou os cálculos, perdera a conta. Blasfemou, voltou para casa, lavou as mãos e sentou-se à mesa, os pensamentos voando rápidos pela janela da sala. No dia seguinte, não haveria de lhe escapar.
Assim, já preparado, João trouxe consigo um resto de tijolo que encontrara na construção da rua de baixo: não haveria de fazer falta ao senhor pedreiro, e lhe seria de grande valia. Com auxílio da peça, pôde então recontar os espécimes, desta vez anotando sobre cada um deles seu respectivo valor numérico. Até que sua mãe o chamou. Estava novamente na sexta fileira, número 555, três-patinhos-ao-contrário. Gostava de brincar com os números, achava-os esbeltos e atraentes. Olhou para o restante da rua. Parecia um rio em época de desova. Mas, de seis em seis fileiras, ele certamente chegaria ao final logo. Voltou feliz para casa, satisfeito pela fabulosa idéia que tivera. Um simples tijolo. Pelo vitrô Dona Coralina espiava de soslaio.
Nesta noite, choveram gotas grossas na janela de João. Seu quarto era fortaleza, mas as goteiras da sala e da cozinha tic-tic-tiqueavam nos seus ouvidos atentos. Não se queixava do barulho. Não obstante, marejava seus olhos o pensamento de que, na rua pedregosa, suas anotações tingiam de rubro a enxurrada. Jurou solução.
Mal acordou, antes até que a madrugadora Dona Coralina, partiu para a calçada esburacada com outro armamento empunhado: um prego grosso e desgastado, já sem ponta, mas que seria útil o bastante. Com o metal, poderia riscar em definitivo a superfície dos para... lele... pí-pe-dos. Reiniciou a labuta. Naquele dia extrapolou o pobre 555. Chegou quase à metade da rua! Exultou-se. Agora nada poderia detê-lo.
Dormiu em paz, mesmo com aquele bendito barulho de máquinas que começara à tarde. Nada poderia. Nada. Sonhou que Dona Coralina lhe oferecia um picolé de leite, muito saboroso, e sorria. Ele nunca vira um sorriso sincero de Dona Coralina. Mulher sisuda, aquela. Despertava-lhe simpatia.
Aquele seis de setembro amanheceu levemente ensolarado. Não era aquele calor infernal, mas também não era um frio de se bater dentes. João deu-se ao luxo de um reforçado desjejum, para ter forças na contagem do dia. Comeu um pão francês inteiro, e bebeu uma caneca caprichada de leite fresquinho da Pérola. A vaquinha malhada que eles tratavam com carinho nos fundos do barraco.
Ouviram palmas do lado de fora; a mãe correu atender. Era Dona Coralina.
- É, menina, finalmente deram um jeito por aqui! Pois não ouviu a barulheira dos tratores ontem? Então.
João olhou por sobre os ombros a ponto de enxergar a velha, embora não prestasse mais atenção ao diálogo: notava mais suas feições. Parecia mais velha do que nunca, as rugas lhe cobrindo toda a cara, mas hoje estava ligeiramente mais bem arrumada. Como se fosse a um evento, uma festa, um almoço beneficente. Ou uma...
- ...inauguração? – ouviu de sua mãe.
- Hoje mesmo. Logo o prefeito chega.
- Pois então carece um trato na casa! João, meu filho, pega sua roupa de domingo.
Sem entender muito bem, vestiu-se. Esperou na sala uns bons quarenta minutos até que a mãe apareceu, com os avós a tiracolo, todos de roupa nova e penduricalhos pelo corpo. Ocasião especial, se é que existe esse tipo de coisa, deveria ser assim. Conversaram um pouco. Discutiram as regras, direitos e deveres de cada personagem naquele dia distinto. João concordava, mas só tinha cérebros para os paralelepípedos restantes. Saíram.
Lá se apinhavam quase todos os moradores do bairro. E o seu Mauro, o prefeito. Que tomou o microfone em cima do palanque e comiciou.
- Amigos marilienses! Trago a vocês mais que boas notícias! Trago o progresso, a renovação, e a promessa de mais desenvolvimento para todos! Por enquanto, ruas melhores; depois, escolas, hospitais, e uma vida nova que...
Calma lá. Ruas? Que quis ele dizer com... ruas?
Olhou para seus pés. Sob o grosseiro da sola de couro que ele raramente calçava, o pequeno João sequer notara que a irregularidade dos pedregulhos não mais habitava o solo. Dera lugar para uma superfície lisa, bem preta, com uns riscos brancos e amarelos.
- ... e dando seqüência ao projeto desenvolvido pela prefeitura, de asfaltamento dos bairros da periferia, buscamos...
Desvencilhou-se das mãos firmes da mãe e virou-se para voltar sozinho para casa. Esbarrou no quadril de Dona Coralina. A velha olhou para ele e sorriu, genuína. Abraçou-o e secou suas tantas lágrimas. Disse que a vida era assim mesmo, cheia de casos e acasos. Que ele tinha que ser paciente com as adversidades e passar por cima delas como pisava o negrume do piche. Uma vez mais sorriu-lhe e soprou, com seus lábios flácidos, no ouvido do menino:
- Sessenta e quatro mil e setecentos.
- A senhora...
- Eu sempre soube.
Viraram-se as costas sem dizer palavra. Cada qual para sua casa, porque o momento já tinha sido o bastante para ambos. Cada qual com suas decepções e entendimentos. Cada qual com suas ilusões. Caminharam com plenitude, e sentiram que tudo pode ser maior do que se imagina, basta uma ligeira alteração de ponto de vista. De velho para novo, de vice para versa. João aprendeu muito aquela tarde. Dona Coralina relembrou muito também. Logo a rua se esvaziou, e só restou ali aquele asfalto quente e sem brilho. O brilho dos paralelepípedos, que passou a habitar os olhos do menino.
Essa é a história de João. Um pensador infinito e brilhante. Um humano.
E, como tal, um sonhador.
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Octávio P. L.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

As Desculpas

Um dia eu acordei a mil. Levantei da cama, e como uma agitação fora do normal corri procurando o mundo a minha volta, todos aqueles meus amigos e minhas antigas risadas. Fazia tempo tinha parado de sonhar, parado de me preocupar, tinha me tornado um animal frio e calculista, mas naquela manhã tudo mudou, olhando para o meu eu no espelho, sorri simpática e me apresentei como se fosse uma nova pessoa, afinal, era assim que eu me sentia.

Nunca descobri o que aconteceu naquela noite para eu levantar assim, mas só sei que algo aconteceu, e esse meu novo ser somente queria mostrar as cicatrizes do passado, sorrir e dizer ‘eu sobrevivi’. Ainda falta muito para se viver é claro, mas sobreviver a um quarto dele já está de bom tamanho para mim.

Telefonei para muitas pessoas, e disse sempre a mesma frase: ‘eu te desculpo’. Não sei se elas entenderam muito bem, mas meu coração já ficou leve. Saber perdoar os outros é sempre o primeiro passo para a maturidade, foi o que me disseram pelo menos, e talvez seja verdade.

Naquela manhã eu não me importei em estar certa ou errada, não me importei em defender minhas crenças ou brigar pelos meus interesses. Naquela manhã somente sorri e deitei na grama, deixando o sol esquentar ainda mais meus sentimentos.