segunda-feira, 2 de agosto de 2010

28 de Junho, Dia do Orgulho Gay

Texto escrito e publicado em Agosto.


"A tarde talvez fosse azul
não houvesse tantos desejos."
Carlos Drummond de Andrade

"É mais fácil quebrar um átomo
do que quebrar um preconceito."
Albert Einstein



,não era só a vontade de estar junto e nomear cada fio de cabelo a nascer ou cair, mas o desejo de trasmutar-se em verme e adentrar, pela carne, o corpo, e vivenciar, em comunhão com aquela alma, o que aquele ser tão interessante e parecido vivia dentro de seu casulo.
As mãos eram admiradas pelos globos oculares, o porcelanato da pele parecia borbulhar em ebulição, produzindo bolhas que desprendiam a porcelana e expunham os músculos em uma descamação grotesca e comovente. O verme cresceu, devido à sua ardencia, e penetrou o corpo, uma vez que a carne estava exposta devido a ebulição, e vivenciou, mesmo que por poucos momentos, a sensação de integrar-se ao ser amado.
O nascer-crescer-viver-reproduzir-morrer, a ordem natural das coisas, a lei da procriação, o divino multiplicar-se, o crossing-over. Sentiam, ambos, o portal do inferno se abrir e abrir seus poros, minas do suor pecaminoso jorrado pelo fogo da paixão anti-cristã.
O prazer expelido pela contraditória natureza, a qual é tão capaz de ceder tentação e desejo para o que é considerado biologicamente inútil, portanto impuro, agora unia as almas com seu grude e beleza cor-das-asas-dos-anjos. Os vestígios de amor produzido por hormônios puramente humanos logo seriam excretados junto a todo repugnante resto de matéria mal-aproveitada pelo organismo também humano, desprezada e enojada. Paradoxos da natureza: Porque iludir o ser com a paixão, fazendo-o depositar sua matéria em lugar que será excretada? Porque iludir o ser com o amor, levando-o a crer que está próximo ao divino, quando na verdade o inferno social o espera?
Cada um passou a amar ainda mais o ser pouco mais conhecido disposto à sua diante. Cada um passou a amar menos a si mesmo. Ambos conheceram o paraíso que é o objeto amado e temiam o inferno que viria pela frente ao voltarem à sociedade humana. Ambos sentiam-se, então, vermes.

Maria.

A Thousand Winds

Do not stand at my grave and weep,
I am not there, I do not sleep.

I am in a thousand winds that blow,
I am the softly falling snow.
I am the gentle showers of rain,
I am the fields of ripening grain.

I am in the morning hush,
I am in the graceful rush
Of beautiful birds in circling flight,
I am the starshine of the night.
I am in the flowers that bloom,
I am in a quiet room.

I am in the birds that sing,
I am in each lovely thing.
Do not stand at my grave and cry,
I am not there. I did not die


Mary Elizabeth Frye

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Certas vezes, me sinto triste. O que é bom... eu acho. Afinal, dedico esse tempo a minha escrita.
Certas vezes, provoco minha propria tristeza, na esperança de que aquela ideia que está cutucando minha mente saia de sua toca e flua em minhas mãos.
Certas vezes, fico feliz. E não existe ninguem na terra capaz de me tirar isso.
Certas vezes, fico brava. Aquela raiva esmagando meu peito. Aquele sentimento que nada está certo.
Certas vezes, sinto vontade de chorar, porem não o faço. Afinal podem me ver, e me julgar.
Certas vezes, sinto vontade de rir, e fico quieta. Com medo do julgamento.
Certas vezes, as pessoas gritam comigo, irritadas com minha lentidão, com meu autismo.
Certas vezes, eu grito com pessoas. Brava por elas não me ouvirem.
Certas vezes, sinto vontade de chorar, e choro. Sem vergonha das pessoas a minha volta.
Certa vezes, sinto vontade de rir, e rio alto. E que se foda meus vizinhos.
Certas vezes, vivo em um paradoxo temporal. Onde o tempo ri da minha cara ao passar lentamente.
Certas vezes, o tempo corre. E não consigo fazer tudo que quero.
Certas vezes, sigo as regras. Temendo o pior.
Certas vezes, quebro as regras. Desejando a punição.
Poucas vezes, faço sentido. Sempre falando em voz alta coisas que somente minha mente entenderia.
Muitas vezes, me expresso. Sem nem me importar com a cara que as pessoas farão ao ler.




-Jackie

terça-feira, 15 de junho de 2010

O desde

Minha querida,
Esta minha escrita não tem data. Na verdade ela é, algo assim, como um desde. Deveríamos ter essa opção quando tratamos de datas. Desde já, desde nunca, desde então.
Aliás, desde é uma palavra interessante. Desde que você existe, por exemplo, minha vida é cheia, intensa, linda. Você, no contexto dela, supre minha existência desde então.
No tempo presente, no futuro e, veja você, no tempo pretérito. Passado sem sua existência inexiste, é inimaginável, inconcebível, impossível. Desde começa e continua. Desde perpetua tudo. Desde que você acredite nisso, é claro.
Desde quando eu te amo? Desde que o tempo não tinha nem o desde.
Pode ser desde sempre?



A.C.
uma nova poeta se apresentando

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Linda Rosa

Maria Gadu:

Pior que o melhor de dois
Melhor do que sofrer depois
Se é isso que me tem ao certo
A moça de sorriso aberto
Ingênua de vestido assusta
Afasta-me do ego imposto
Ouvinte claro, brilho no rosto
Abandonada por falta de gosto
Agora sei não mais reclama
Pois dores são incapazes
E pobres desses rapazes
Que tentam lhe fazer feliz
Escolha feita, inconsciente
De coração não mais roubado
Homem feliz, mulher carente
A linda rosa perdeu pro
cravo...

segunda-feira, 31 de maio de 2010

- Qual o seu nome?
- Meu nome?
-É.
- Não sei.
- Ué. Você não tem nome?
- Não.
- Então como te chamam?
- Numero 8.
- Isso não é um nome querida.
- Mas é assim que me chamam.
- Porque te chamavam assim? É horrível.
- Por que eu era a oitava garota a entrar na sala de teste.
- Isso faz de você uma cobaia.
- Todos nós somos. De um homem mais poderoso que ti. Ou de Deus.
- Ninguém podia ter te obrigado a participar de nada.
- É claro que podiam. Eles eram maiores e mais fortes.
- Querida, não quero que fique pensando nisso, você é uma sobrevivente, queremos te dar uma vida melhor, uma casa, um nome.
- Pois não se preocupem. Já tenho um nome. E uma casa.
- Um antigo hospício e número 8 não podem ser considerados isso.
- Então tá.
- Então decidiu qual o seu nome?
- Oito, senhor.
- Aihh. e lá vamos nós...



- Jackie
-

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Dueto


Consta nos astros, nos signos, nos búzios
Eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz

Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado, está computado nos dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz

Consta na pauta, no Karma, na carne, passou na novela
Está no seguro, pixaram no muro, mandei fazer um cartaz
Serás o meu amor, serás a minha paz

Mas se a ciência provar o contrário, e se o calendário nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz





...consta nos mapas, nos lábios, nos lápis...
...consta nos Ovnis, no Pravda, na Vodca ...


-Chico Buarque

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Eu, tu, Luciana e a Coreia


Era o último dia de primavera e Luciana já perdia as esperanças de que seu pé de feijão brotasse.
Uma bomba explodia do outro lado do globo. Dizam as autoridades ser apenas um teste de armas, totalmente para fins pacíficos.
Não sei a que situação meu grau de drama assemelhava-se, sei apenas que estava comovida e queria dizer-te o quanto sentia pelo teu pesar.
Luciana tinha certeza de que seu experimento daria certo dessa vez. Estava na quinta série, e o projeto feijão - como seus coleguinhas de sala o chamavam - valia metade da nota de ciências aquele bimestre. Fizera tudo conforme o livro mandava: plantar o feijão em um copo, em algodão úmido, e deixá-lo em local de luminosidade moderada.
Abracei Luciana dizendo-lhe que sua preocupação era muito grande, desproporcional ao seu tamanho infantil. Luciana não me compreendeu, mas me beijou a face e por isso senti alívio imediato para minha preocupação proporcional ao meu tamanho médio, se me considerarem não mais tão criança assim.
Na televisão, os grandes homens continuavam a discutir uma possível guerra na Coreia. Por um momento, desejei que a Coreia se explodisse, mesmo. Ri de minha própria ironia vulgar, e depois me arrependi: mais pelo ridículo do que pela maldade.
Liguei-te com um peso grande no coração, tu não me atendeste, e era o último dia de primavera - que pena.
-Maria.

Rebeca Luz na vertigem da manhã


Era na manhã que seus cabelos já não tão lisos embarçavam-se aos pensamentos da noite anterior. Sonhos e preocupações sonâmbulas pairavam pelos ares e já tão cedo tinham cheiro de café fresco. Pediam adoçante.
Seu subconsciente escorria pelo ralo junto ao suor noturno de mais um descanso solitário. Rebeca tinha a impressão de ver nas bolhas de sabão os últimos detalhes de seus pouco desvendados sonhos - "Logo, sequer, lembrarei-me deles."
Sabia o quão perigoso pode ser um simples acordar. Desembaraçava a mente com auxílio de um pente e condicionador. Seriam seus frágeis fios espalhados pelo chão sinal de que até o que está na intocabilidade de sua mente condena-se a ser passageiro?
Pegou a toalha e, antes de enxugar-se, cheirou-a. Não possuía mais o cheiro de outrora, não possuía teu cheiro.
Rebeca esforaça-se para lembrar-se de ti. No entando, a cada noite que passa, uma nova manhã chega e, sutilmente, leva teus últimos sinais para junto da água suja de seu corpo, para o encanamento do condomínio Veríssimo, para os esgotos de Maceió, para algum rio ilegalmente invadido pela poluição urbana e, finalmente, deságua no oceano. Onde permanece.
Assim, afastas-te de Rebeca. Ela procura uma última lembrança do bravo homem que um dia a acompanhou buscando em um espelho a imagem da garota que um dia fora tua. Não reconhece a mulher que vê.
-Já não sou mais eu...
E pinga três gotas de leite em seu café artificialmente adoçado, pois é o único pensamento que insiste em invadir sua mente no momento.


-Maria.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

O antebraço

Inicia-se na dobra que distingue sua brutalidade nata de seu desprezo pelo que julga subimportante, impotente, doce. Em veias sobressalientes correm seus desejos doentis. Para que dois braços se sequer é capaz de dar um abraço? Um já lhe seria justo.
Nascem dessa subforça seus pelos marrons, negros e dourados. Lisos, talvez profundos. Nas profundezas são abrigados seus bulbos. Um pequeno bulbo gorduroso de onde emina toda a pelagem e todo o odor. Seriam eles pequenos bulbos de cebola subcutâneos?
Observo em sua extensão várias pintas. Na parte inferior, três se destacam pelo contraste com a cor menos bronzeada da pele.
A primeira: Provavelmente a maior - provavelmente motivo de orgulho. É também a mais distante das mãos. Analisei-a de perto. Perfeitamente esférica, limpa. Chegava a ser charmosa. Talvez uma herança da genética meiga que lhe fora recusada pelo espírito medíocre.
A segunda: Repugnante. Disforme. Imagino que um dia sua vaidade lhe faça arranca-la. Ou talvez sua preocupação com a saúde. Nela há dois bulbos: um grande, central, de qual brota um grande pelo negro, possivelmente retirado esporadicamente. Um menor, próximo ao central, praticamente insignificante. Se os olhares não se destinassem ao anterior, dificilmente este seria notado.
A terceira: bastante próxima à mão, era a de cor mais suave. Sequer sei julgar se era uma pinta ou uma mancha. Localiza-se sobre uma das veias sobressalientes do pulso. Era esta a responsável pelo juízo de não cortar-se com a navalha nos momentos de angústia?

Quase formavam as três marias, se não fosse por um pequeno desvio da terceira em relação ao eixo formado. No entanto, a linha construída por tais quase acompanhavam as linhas de fluxo sanguíneo. Um dia abrirei o antebraço para descobrir.
No pulso, veias e artérias, cruzelíneas, prestes a explodir. Mimetismo da força apenas aparente. Destinam-se finalmente a irrigar suas mãos, aparentemente mais humanas, sobre as quais escreverei em uma ocasião mais oportunua.

Maria.

sábado, 24 de abril de 2010

De vita et somnium.

[Para Sku,
que mantenha o sorriso no rosto e o brilho nos olhos.]

Essa é a história de João.

João de Deus nasceu num bairro pobre da interiorana Marília. Pai desconhecido, mãe adolescente, avós desempregados. Que mais podia ele sofrer na vida? A vida é por si um sofrimento, dizia Dona Coralina, do casebre vizinho. Talvez ela tivesse razão. Embora, para o menino, ela estivesse redondamente equivocada. Fato que era velha e, como todo velho, devia saber mais sobre a vida. Mas ele era criança. E, como toda criança, sabia mais sobre os velhos. Antes disso, pensava que a vida é aquilo que vivemos.
Crianças, esses ignorados grandes filósofos da humanidade.
Um dia resolveu que queria porque queria saber quantos paralelepípedos constituíam a rua de sua casa. Nem sabia pronunciar o nome daquelas pedras quadradas, mas queria contá-las. Principiou, ajoelhado na poeira sob ardentes sóis, a difícil tarefa. Contou um por um, devagar, com cuidado para não pular os menores paralepi... parapile... pedras. Quando estava lá pela sexta fileira, sua mãe o convocou ao jantar. Mas que hora ingrata! Cessou os cálculos, perdera a conta. Blasfemou, voltou para casa, lavou as mãos e sentou-se à mesa, os pensamentos voando rápidos pela janela da sala. No dia seguinte, não haveria de lhe escapar.
Assim, já preparado, João trouxe consigo um resto de tijolo que encontrara na construção da rua de baixo: não haveria de fazer falta ao senhor pedreiro, e lhe seria de grande valia. Com auxílio da peça, pôde então recontar os espécimes, desta vez anotando sobre cada um deles seu respectivo valor numérico. Até que sua mãe o chamou. Estava novamente na sexta fileira, número 555, três-patinhos-ao-contrário. Gostava de brincar com os números, achava-os esbeltos e atraentes. Olhou para o restante da rua. Parecia um rio em época de desova. Mas, de seis em seis fileiras, ele certamente chegaria ao final logo. Voltou feliz para casa, satisfeito pela fabulosa idéia que tivera. Um simples tijolo. Pelo vitrô Dona Coralina espiava de soslaio.
Nesta noite, choveram gotas grossas na janela de João. Seu quarto era fortaleza, mas as goteiras da sala e da cozinha tic-tic-tiqueavam nos seus ouvidos atentos. Não se queixava do barulho. Não obstante, marejava seus olhos o pensamento de que, na rua pedregosa, suas anotações tingiam de rubro a enxurrada. Jurou solução.
Mal acordou, antes até que a madrugadora Dona Coralina, partiu para a calçada esburacada com outro armamento empunhado: um prego grosso e desgastado, já sem ponta, mas que seria útil o bastante. Com o metal, poderia riscar em definitivo a superfície dos para... lele... pí-pe-dos. Reiniciou a labuta. Naquele dia extrapolou o pobre 555. Chegou quase à metade da rua! Exultou-se. Agora nada poderia detê-lo.
Dormiu em paz, mesmo com aquele bendito barulho de máquinas que começara à tarde. Nada poderia. Nada. Sonhou que Dona Coralina lhe oferecia um picolé de leite, muito saboroso, e sorria. Ele nunca vira um sorriso sincero de Dona Coralina. Mulher sisuda, aquela. Despertava-lhe simpatia.
Aquele seis de setembro amanheceu levemente ensolarado. Não era aquele calor infernal, mas também não era um frio de se bater dentes. João deu-se ao luxo de um reforçado desjejum, para ter forças na contagem do dia. Comeu um pão francês inteiro, e bebeu uma caneca caprichada de leite fresquinho da Pérola. A vaquinha malhada que eles tratavam com carinho nos fundos do barraco.
Ouviram palmas do lado de fora; a mãe correu atender. Era Dona Coralina.
- É, menina, finalmente deram um jeito por aqui! Pois não ouviu a barulheira dos tratores ontem? Então.
João olhou por sobre os ombros a ponto de enxergar a velha, embora não prestasse mais atenção ao diálogo: notava mais suas feições. Parecia mais velha do que nunca, as rugas lhe cobrindo toda a cara, mas hoje estava ligeiramente mais bem arrumada. Como se fosse a um evento, uma festa, um almoço beneficente. Ou uma...
- ...inauguração? – ouviu de sua mãe.
- Hoje mesmo. Logo o prefeito chega.
- Pois então carece um trato na casa! João, meu filho, pega sua roupa de domingo.
Sem entender muito bem, vestiu-se. Esperou na sala uns bons quarenta minutos até que a mãe apareceu, com os avós a tiracolo, todos de roupa nova e penduricalhos pelo corpo. Ocasião especial, se é que existe esse tipo de coisa, deveria ser assim. Conversaram um pouco. Discutiram as regras, direitos e deveres de cada personagem naquele dia distinto. João concordava, mas só tinha cérebros para os paralelepípedos restantes. Saíram.
Lá se apinhavam quase todos os moradores do bairro. E o seu Mauro, o prefeito. Que tomou o microfone em cima do palanque e comiciou.
- Amigos marilienses! Trago a vocês mais que boas notícias! Trago o progresso, a renovação, e a promessa de mais desenvolvimento para todos! Por enquanto, ruas melhores; depois, escolas, hospitais, e uma vida nova que...
Calma lá. Ruas? Que quis ele dizer com... ruas?
Olhou para seus pés. Sob o grosseiro da sola de couro que ele raramente calçava, o pequeno João sequer notara que a irregularidade dos pedregulhos não mais habitava o solo. Dera lugar para uma superfície lisa, bem preta, com uns riscos brancos e amarelos.
- ... e dando seqüência ao projeto desenvolvido pela prefeitura, de asfaltamento dos bairros da periferia, buscamos...
Desvencilhou-se das mãos firmes da mãe e virou-se para voltar sozinho para casa. Esbarrou no quadril de Dona Coralina. A velha olhou para ele e sorriu, genuína. Abraçou-o e secou suas tantas lágrimas. Disse que a vida era assim mesmo, cheia de casos e acasos. Que ele tinha que ser paciente com as adversidades e passar por cima delas como pisava o negrume do piche. Uma vez mais sorriu-lhe e soprou, com seus lábios flácidos, no ouvido do menino:
- Sessenta e quatro mil e setecentos.
- A senhora...
- Eu sempre soube.
Viraram-se as costas sem dizer palavra. Cada qual para sua casa, porque o momento já tinha sido o bastante para ambos. Cada qual com suas decepções e entendimentos. Cada qual com suas ilusões. Caminharam com plenitude, e sentiram que tudo pode ser maior do que se imagina, basta uma ligeira alteração de ponto de vista. De velho para novo, de vice para versa. João aprendeu muito aquela tarde. Dona Coralina relembrou muito também. Logo a rua se esvaziou, e só restou ali aquele asfalto quente e sem brilho. O brilho dos paralelepípedos, que passou a habitar os olhos do menino.
Essa é a história de João. Um pensador infinito e brilhante. Um humano.
E, como tal, um sonhador.
*
*
*
Octávio P. L.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

As Desculpas

Um dia eu acordei a mil. Levantei da cama, e como uma agitação fora do normal corri procurando o mundo a minha volta, todos aqueles meus amigos e minhas antigas risadas. Fazia tempo tinha parado de sonhar, parado de me preocupar, tinha me tornado um animal frio e calculista, mas naquela manhã tudo mudou, olhando para o meu eu no espelho, sorri simpática e me apresentei como se fosse uma nova pessoa, afinal, era assim que eu me sentia.

Nunca descobri o que aconteceu naquela noite para eu levantar assim, mas só sei que algo aconteceu, e esse meu novo ser somente queria mostrar as cicatrizes do passado, sorrir e dizer ‘eu sobrevivi’. Ainda falta muito para se viver é claro, mas sobreviver a um quarto dele já está de bom tamanho para mim.

Telefonei para muitas pessoas, e disse sempre a mesma frase: ‘eu te desculpo’. Não sei se elas entenderam muito bem, mas meu coração já ficou leve. Saber perdoar os outros é sempre o primeiro passo para a maturidade, foi o que me disseram pelo menos, e talvez seja verdade.

Naquela manhã eu não me importei em estar certa ou errada, não me importei em defender minhas crenças ou brigar pelos meus interesses. Naquela manhã somente sorri e deitei na grama, deixando o sol esquentar ainda mais meus sentimentos.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Um dia.

Um dia você acorda com os intensos raios de sol queimando-lhe a face, e percebe que há um buraco profundo no peito, cavado arduamente, e valas profundas que te intragam ao engolir saliva da boca seca. Descobre que as circunstâncias, as emoções, as palavras, os sentidos, ficaram para trás. E, de alguma forma, seu corpo mundano deu passos mudos e sua alma permaneceu atrelada a um sopro de vida que já se foi.
Um dia. Ah, um dia! Questiona-se o motivo da existência. Esquece o abraço envolvente da religião, as doces ilusões das conquistas supérfulas e as resposta filosóficas dogmáticas. Olha ao redor. Todos caminham desisteressados na sua vidinha certa, e só você está parado. Os que vêm atrás passam por você sem mirarem seus olhos. Você procura alertá-los. Mas qualquer grito que saia do âmago de seu profundo peito é fragmentado e inteligível. É incerto. É medroso.
Checa as margens. Caminha receoso até elas.
E permanece.
Enquanto isso, o rio da vida corre incessante até sua foz.
Você decide fechar perenemente os olhos.
E permanece.

A. dos Anjos

terça-feira, 16 de março de 2010

o órgão

Pegou-o, pulsando, nas mãos;

Apertou-o, acalmando-o, no peito;

Toda sua força usou.

As duas mãos pressionando contra si.


Cansou-se, afastou-o do corpo;

Olhou-o com indignidade;

Ódio, talvez; decepção, quiçá...


Guardou-o no bolso,

Escondido,

E abandonou-o.


rebeca

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

sonhos




Ela era assim, diferente de todas.
Ela era,
e só era.








Enquanto outras preocupavam-se em parecer ser,
ela parecia,
e era.

E aparecia.

Para ela,
nada importava,
além de si
além de ser...

E um dia,
de tanto ser
percebeu que ser só não bastava
e quis serem...

Sermos, seremos
Seríamos,
Fomos,
Éramos...

E então, não foram.

Ela voltou a ser só;
ela, só ela era.
Era inteira!
Era incrível!
Era implacável!
Era irresistível!

E decidiu, simplesmente, ser;
Sem se importar se seriam com ela.
Mas os que quisessem estar,
seriam bem recebidos
Desde que estivessem
à margem do que ela era...
Rebeca

Sobre Anas

[Singela homenagem às Anas que eu tanto amo.]


Dentre tantos, há sempre um que se sobressai. Ou por beleza, ou por incomum inteligência, ou por autenticidade. Ou mais: por tudo isso. É claro que não é nem um pouco fácil encontrar uma dessas criaturas divinas, mas sabemos que elas existem em sua plenitude. Às vezes, encontrá-las é fácil: basta um olhar a leste que lá estão, brilhantes e polpudas de majestade. Bem mais difícil que isso é falar sobre elas.

Vocês, Anas, são assim.

Não são como as pessoas comuns, tão frágeis e dependentes. Uma Ana de verdade sabe se virar sozinha muito bem, obrigada. Enfrenta os desafios com destreza tal que impressiona os mais desavisados de seu poder. Medo nenhum consegue detê-la; medo nenhum faz suas mãos tremerem. Ah, de jeito nenhum. Suas mãos só tremem de ódio.

Espera lá. Não, não me refiro ao ódio sujo e desnecessário das pessoas comuns. É um ódio de Anas. Ódio de injustiças, de safadezas e impropérios. Ódio das maldades do mundo, que vocês repugnam com tanto fervor que chegam a eliminá-las do ambiente em que se inserem. Melhor para quem fica por perto. A oportunidade de adentrar a aura de uma Ana é única. Assim como a própria.

Sabe o que eu mais admiro nas Anas? O temperamento. Explosivas, de fato. Mas é isso que lhes dá força, a ânsia pela batalha nobre de cada dia. Afora os eventuais aforismos e desaforos, que afinal não são lá um pecado, Anas são delicadas e gentis, suaves como só. Seu toque reconforta, suas palavras ensinam, seu olhar hipnotiza. E me carrega para um mundo incônscio de sonhos azuladamente ensolarados. Aí, você me abraça.

O abraço de uma Ana é impossível. De não se sentir. De se explicar. Como se fosse necessário fazê-lo... Essa impossibilidade encantadora me atrai, gigantesco ímã, em sua direção. Irresistível. Inócua. Não há que fazer; apenas me entregar de corpo e alma a esse teatro de realidade fantástica. É o que faço.

E como não seria assim? Você é Ana. E eu, sou mais um apaixonado. Paixão por Anas é arrebatadora, infinita. Só quem já sentiu sabe. Não precisa seguir o bendito estereótipo de paixão carnal; basta sentir o coração rufando de ansiedade quando te vê chegando sorridente. Mais inocência e paz do que simples desejo. Mais saudades do que falta em si. É... Amar uma Ana é inevitável. Mas tão inevitável, que eu te amo.

E como seria de outro jeito? Sem a saciedade do seu Amor de Ana, nada tem a mesma graça. Sem a presença de Anas, a vida é parada. Porque esse é o jeito Ana de ser. Grandes, belas, sábias, doces. Únicas.

Soberanas.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Sinos badalam nas Olimpíadas de Vancouver. Uma freira reza sonolentamente seu terço às duas da tarde. Procuro minhas chaves no bolso. Bruscos átomos são rompidos em uma usina nuclear. O universo expande-se placidamente.

Terminou seu café da manhã: Bananas, pão com geléia de uva, suco de laranja (de caixinha, é claro), e uma xícara de chá. Comera demais. Atrasara-se para o serviço.

O ônibus das 08:15 fora perdido. "Tudo bem, pego o das 08:30 e saio mais tarde do serviço. Posso até almoçar enquanto trabalho para sair mais tarde a noite e pegar o jogo do Fluminense."




Uma mulher de voz gorda derrubara suas chaves no bueiro. Três gatos mansos ficaram presos em uma árvore. Um deles possuía pelagem castanha e olhos verdes. Surfistas competem em no Havaí, monges oram no Nepal.

Era meio dia e quinze, e estava quase terminando uma reportagem. Pensava ancioso em como seria o jogo aquela noite. Planejava comprar amendoins.

Almoçou em frente ao computador. Recebeu ordens superiores de corrigir um texto de um colega de trabalho iniciante. "Porque nao mandam o estagiario fazer um trabalho desses?" Iniciou o fardo a ele encarregado. "Quantos erros de pontuação."

Sete jibóias encontradas mortas nas margens do rio Prosa. Cientistas afirmam ser resultado da poluição. Apple promete lançar novo aparelho de celular até o final do ano. Um homem loiro entrou na loja de calçados mais próxima.

Acabara o expediente. Passara na tabacaria.

-Não, não vendemos amendoins, desculpe-nos.

Tudo bem, só esperava que seu time ganhasse. Pegou seu casaco, entrou no metrô. Já era tarde, o vagão estava pouco cheio. Uma velha malcheirosa sentou-se ao seu lado.

Desceu antes da estação desejada. Percebeu que não conhecia aquela região da cidade. Um arranha-céu parecia chamar-lhe para perto das estrelas.

Joana arruma as malas. Marcio pede para que ela não se esqueça de sua camisa branca. Células reproduzem-se por mitose em um pedaço de carne apodrecida. Um homem joga-se da da cobertura de um arranha-céu em uma noite estrelada. Um leitor nada conclui a respeito de uma leitura feita.


Maria.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Dona

Ela era assim, diferente de todas que ele já tinha conhecido. Da primeira vez em que a viu ele sabia, ela era algo mais, algo melhor.
Ela não olhava direito para ele, não por desprezo mas sim por medo. Medo de não ser correspondida. Tinha paúra de demonstrar o quando o queria e não ser fitada da mesma forma, com o mesmo calor.
Tocou no braço dela gentilmente com as mãos desejeitadas e trêmulas, uma frase ensaiada na cabeça, uma dose de vodka que ainda armagava a garganta para dar coragem... Ela hesitou em olhar para trás, o suor frio corria por suas temporas e era como se um milhão de borboletas voassem por debaixo de sua branca tez.
Gaguejaram. Os dois. Sem saber o que dizer ou mesmo o que fazer... as palmas das mãos suavam, as pernas bambeavam, a tensão entre eles era tão grande e tão obvia que todos ao redor podiam ver que algo estava para acontecer naquele canto, com aqueles dois temorosos quase-amantes.
A moça quase desfaleceu nos braços do rapaz, quando ele a trouxe para perto e envolveu seu corpo todo no dela era como se a vida finalmente tivesse sentido, ele sabia que nascera para ficar atracado com aquela pequena.
Uma vez juntos todo o desespero sumira, dando lugar a uma divina sensação de conforto e alívio que imediatamente foi substituída pelo desejo.
Um fogo ardia entre eles e de longe se via que não seria facil separar os lábios dele dos dela.
Marcha pra dentro do salão uma mulher vestida com trajes longos e discretos, discretos demais para sua idade, longos demais para o clima local... sem olhar para os lados nem pestanejar ela se dirige ao recém formado casal e abruptamente crava as unhas negras nas costas do despreocupado amante. Ranca-o dos beijos de sua doce e imponente parceira, lembra-o de todos os seus erros, suas impurezas, suas falhas... lembra-o de que ele não merece estar ao lado daquela moça e de suas graças; penosamente arrastou-o para perto e rindo-se apontou para a chorosa moça, a dona do coração daquele errante apaixonado. Zombeteira como ela só, anunciou à todos que ganhara da novata e que o rapaz estava agora sob seu domínio.
Dona, assim se chamava. Dona dos corações alheios, dona das graças e das paixões, dona dos dias e das noites. Dona dele. Dona segurou o pranto, tentou manter a pose e não desmanchar-se ali em público, mas todos sabiam que por dentro ela estava um caco, menos que isso, uma caca.
Ele fingia não se importar, dançava com todas, ria de tudo, bebia muito, fumava bastante. Ele não mais olhava pra ela e nem mostra arrependimento... e ela, em frente a tudo isso, se doia, se roia, se contorcia.
Queria muito entender o que há numa palavra nas palavras pequenas que as fazem tão cortantes. Só, quando a tal palavra 'só' se aproximava trazia com ela a imensa palavra solidão. Dor, tão mínima e tão ferina, deixava seu coração dolorido. Fé, que trazia esperanças falsas e com ela desapontamentos infinitos. Fim, que carregava consigo uma infinidade de frases não ditas de algo mal resolvido.
A quase tudo que vivia arrumava um jeito de atrelar algo de penoso, mas a tudo que pensava ser penoso viu o quanto era rico... e o quão esperta ela se tornara depois de sua grande decepção.
Ele nunca superou tê-la perdido. Nunca superou o medo de ferir seu orgulho e tomar sua Dona de volta.
Ela fez dele uma memória, nada mais que uma lembrança do passado, um aprendizado. Ela... já não pensa nos erros, ela agora se concentra nas lições.
Ele parou no tempo. Ela voou para o amanhã.
Ele é da moça ruim. Ela não é de ninguém, é Dona de sua própria vida.
E quem um dia irá dizer que existe razão?

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Eu costumava ter você ao meu lado.
Eu costumava sentir você dentro de mim. E era maravilhoso sentir nossos dois corações batendo juntos.
Eu costumava sonhar acordada.
A realidade surgiu, porem, com verdades arrebatadoras.
O silencio, a solidão tomando conta dos meus dias.
A cama fria me acompanhando pela noite.
Eu costumava chorar, desejando o seu calor, o seu coração.
Porem eu me acostumei.
Eu me acostumei a não contar com ninguém.
Eu me acostumei a ouvir somente o som do meu coração.
Eu me acostumei a viver no pesadelo.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Do entendimento

Se o fogo de meus dragões te abandonam em chamas;
Se um belo dia choro pitangas,
quando na véspera sorri margaridas;
É porque tenho um talento,
disfarçado,
para o drama.
Se te confundo e despedaço seus sentimentos,
e logo depois,
remonto um lego de amores dentro de mim;
Se te confesso sonhos,
e me desespero em pesadelos;
É minha alma em chamas
atrás do frio da minha pele...

Mas se seu sorriso me contempla,
Se tua boca exorcisa meu paradoxo imortal;
Com você sou toda paz,
como num respirar exausto e onírico de criança...

rebeca
Uma vez me disseram que você só pode se apaixonar uma vez na vida. Se for assim, eu estou fudida. Me perdoe a palavra, mas eu não conheço nenhuma melhor para explicar minha situação, afinal, minha primeira paixão foi por uma folha de papel.

Desde que eu me lembro eu sonhava com isso, com o momento que eu pudesse sentar e escrever, o momento que toda a minha mente se acalmava. Essa foi a minha paixão.

E depois disso, eu me considerei quebrada. Se eu gostava das pessoas? Era obvio que sim, mas não era a mesma coisa. Não havia o mesmo desejo. E eu disfarçava rindo e fingindo que tudo que estava bem.

Ainda me lembro da primeira vez que eu senti algo remotamente parecido. Foi a primeira vez que eu senti como uma pessoa normal. E eu deixei de lado minha escrita, dizendo a mim mesma que eu sobreviveria com aquele sentimento, que eu não precisava de algo tão intenso como a minha primeira paixão.

E foi bom enquanto durou, e eu chorei quando acabou. Sofri? Sim. Mas não pelo tempo que eu queria. Porque novamente estava envolta com meus pensamentos e minhas historias. Me odiei por cinco minutos, e então fiz questão de deixar claro para todo mundo a minha volta quão problemática eu era. Não sei mesmo por que fiz isso, talvez quisesse provar algo para alguém, ou talvez escutar que eu não era assim tão problemática.

Não funcionou, e nunca iria funcionar. Eu tenho minhas paixões, ou melhor, minha primeira paixão, e existem coisas que são impossíveis de esquecer. Para algumas pessoas, as normais eu digo, é aquele primeiro namorado, é a mãe e o pai, ou até uma grande amiga.

Para mim, só existe uma coisa que não consigo abandonar, uma coisa que eu não consigo esquecer. E talvez, seja hora de me acostumar com o fato de que eu nunca serei como todos.

Sou uma apaixonada pelo que escrevo, do mesmo jeito talvez, que uma mãe ama um filho, ou uma mulher o seu marido. De vez em quando até mais.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Em tarde ser.

Hoje, acordei mais cedo que de costume, disposto a ser melhor.
Tenho vontade de sair de casa vestido em pijama xadrez mesmo, e distribuir gratuitamente abraços afetuosos aos pedestres. Dizer a eles, "vejam, a vida está aí, e não fazemos por merecê-la, vamos vivê-la, meus caros, vamos ser." Não posso: serei considerado um estrangeiro de minhas faculdades mentais. Ou um drogado. Tudo bem.
Há outras formas de ser melhor.
Lavar a louça, por exemplo. Os copos, os talheres, os pratos, as pequenas vasilhas de inox. Tudo tinindo, brilhante como novo. Ponho-me a observar a espuma do detergente de maçã, tão branca, e as minhas faces, milhões de vezes refletidas na lisa superfície das bolhinhas. Como eu amo fazer bolhas de sabão! É tudo tão nostálgico, e simples, e bonito! Inocente.
Continuo o processo. Enquanto percorro o pano seco sobre os utensílios, imagino que será de minha tarde de hoje. Gostaria de sair um pouco, conversar. Mas vivemos num tempo em que as pessoas já não têm tempo para jogar conversa fora; matar tempo. Hoje, temos que resolver nossos tantos problemas do cotidiano, temos que correr atrás de tudo... Correr atrás do tempo. Hoje, ele é que nos destrói. Ou nós mesmos?
Não importa. De qualquer forma, também eu tenho tanto que fazer!
Não haverá tempo para ser melhor.
Ainda preciso arrumar a casa. Varrer os tantos milímetros de poeira que denunciam minha inadimplência de ontem. Ando pelos cômodos e me esqueço de observar alguns detalhes: o design da cama de solteiro, o trabalho da torneira da pia, o brilho do vidro na mesa de jantar. Os rostos das fotografias penduradas pelas paredes. Não os reconheço mais. Será a ação do tempo? Mais uma vez, ele me passa para trás. Corrói a tinta das imagens, corrói as imagens de minha mente. Por que pensar nisso agora, se ainda há tanto pó para se espanar?
Recolho livros do chão, que há muito já não leio. CDs que há muito não ouço. Roupas que há muito não me servem mais. Guardo tudo em seu respectivo lugar. Deixo a claridade do dia entrar pelas janelas, mas já não há claridade. Caiu a noite. Tranco a porta da frente, contemplo e avalio a arrumação recém-completa. Com a casa organizada, consigo pensar melhor.
Mas aí meu dia já se acabou, a louça se lavou, minha casa se arrumou, mas meu pensamento, que fim levou?
Continuo aqui, fora dos meus padrões, como um alheio de si. Continuo tentando achar respostas, mesmo sem saber quais as perguntas. Continuo soluçando, mesmo com o copo d'água a meros quatro metros de meus dedos.
Continuo sem saber o que fazer hoje à tarde.
E a tarde, coitada, já se tornou crepúsculo.

*

Voss.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

(a figura é o título do texto)







“?”, eu me pergunto.


E aguardo a resposta tênue do eco oco de minha solidão:


“Sonhei contigo. Dia desses.”


Espero que tenha sido bonito. “Tu te lembras?”


“Não.”


“Ah... Também comigo, nunca me recordo.”


Mentira. Lembro-me perfeitamente.


Era uma papelaria. Deus, por que raios uma papelaria? Não sei, mas também isso não importa. O que importa é que eu estava ali, e tu estavas ali também. E estavas linda, como não podia deixar de ser.


E te demoraste um pouco, ficando logo atrás de mim, com um leve sorriso nos lábios. Aquele sorriso que apenas tu consegues produzir com perfeição, sob as amêndoas de teus olhos tão profundamente escuros. Monalisicamente me observando. Segui meu caminho por entre as diversas prateleiras de cadernos capa-dura e brochuras, lápis e borrachas, pincéis e guache, lantejoulas e papéis de carta. Seguido por ti, minha sombra sorridente [e tão amada sem saber].


Ah, os sonhos...


Repentinamente, tu te atiras sobre mim, enlaçando-me o pescoço com teus braços suaves por sobre meus ombros trêmulos. E ali permaneceste, como uma criança em brincadeira, dentes alvos e brilhantes à mostra para meu mais sincero deleite. Neste abraço ficamos alguns instantes. Derreti, claro.


Então tu me olhaste com ternura...


Então tu te aproximaste de mim lentamente...


Então eu pude sentir seu hálito de hortelã roçando de leve no meu pescoço...


Então tu me deste um beijo cheio de calor bem perto da minha boca.


Fecho os olhos. Absorvo cada milímetro do seu toque, sinto [como se estivesse acordado] cada gota de paixão, cada grama de carinho, anexos aos seus lábios. Nada mais faz sequer um barulhinho, nada me atrai mais, nada é visível ou invisível aos olhos. Exceto minha rainha encantada delicadamente me abraçando. É tudo sonho... O melhor deles.


“Eu te amo.”


“O que você disse?”


Desperto de minhas lembranças com teus olhos questionadores. Não parecem tão apaixonados quanto em sonho. “Nada, querida. Nada.”


“Hm.”



Aquele abraço, eu nunca pude esquecê-lo.




Voss[o]