segunda-feira, 31 de maio de 2010

- Qual o seu nome?
- Meu nome?
-É.
- Não sei.
- Ué. Você não tem nome?
- Não.
- Então como te chamam?
- Numero 8.
- Isso não é um nome querida.
- Mas é assim que me chamam.
- Porque te chamavam assim? É horrível.
- Por que eu era a oitava garota a entrar na sala de teste.
- Isso faz de você uma cobaia.
- Todos nós somos. De um homem mais poderoso que ti. Ou de Deus.
- Ninguém podia ter te obrigado a participar de nada.
- É claro que podiam. Eles eram maiores e mais fortes.
- Querida, não quero que fique pensando nisso, você é uma sobrevivente, queremos te dar uma vida melhor, uma casa, um nome.
- Pois não se preocupem. Já tenho um nome. E uma casa.
- Um antigo hospício e número 8 não podem ser considerados isso.
- Então tá.
- Então decidiu qual o seu nome?
- Oito, senhor.
- Aihh. e lá vamos nós...



- Jackie
-

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Dueto


Consta nos astros, nos signos, nos búzios
Eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz

Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado, está computado nos dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz

Consta na pauta, no Karma, na carne, passou na novela
Está no seguro, pixaram no muro, mandei fazer um cartaz
Serás o meu amor, serás a minha paz

Mas se a ciência provar o contrário, e se o calendário nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz





...consta nos mapas, nos lábios, nos lápis...
...consta nos Ovnis, no Pravda, na Vodca ...


-Chico Buarque

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Eu, tu, Luciana e a Coreia


Era o último dia de primavera e Luciana já perdia as esperanças de que seu pé de feijão brotasse.
Uma bomba explodia do outro lado do globo. Dizam as autoridades ser apenas um teste de armas, totalmente para fins pacíficos.
Não sei a que situação meu grau de drama assemelhava-se, sei apenas que estava comovida e queria dizer-te o quanto sentia pelo teu pesar.
Luciana tinha certeza de que seu experimento daria certo dessa vez. Estava na quinta série, e o projeto feijão - como seus coleguinhas de sala o chamavam - valia metade da nota de ciências aquele bimestre. Fizera tudo conforme o livro mandava: plantar o feijão em um copo, em algodão úmido, e deixá-lo em local de luminosidade moderada.
Abracei Luciana dizendo-lhe que sua preocupação era muito grande, desproporcional ao seu tamanho infantil. Luciana não me compreendeu, mas me beijou a face e por isso senti alívio imediato para minha preocupação proporcional ao meu tamanho médio, se me considerarem não mais tão criança assim.
Na televisão, os grandes homens continuavam a discutir uma possível guerra na Coreia. Por um momento, desejei que a Coreia se explodisse, mesmo. Ri de minha própria ironia vulgar, e depois me arrependi: mais pelo ridículo do que pela maldade.
Liguei-te com um peso grande no coração, tu não me atendeste, e era o último dia de primavera - que pena.
-Maria.

Rebeca Luz na vertigem da manhã


Era na manhã que seus cabelos já não tão lisos embarçavam-se aos pensamentos da noite anterior. Sonhos e preocupações sonâmbulas pairavam pelos ares e já tão cedo tinham cheiro de café fresco. Pediam adoçante.
Seu subconsciente escorria pelo ralo junto ao suor noturno de mais um descanso solitário. Rebeca tinha a impressão de ver nas bolhas de sabão os últimos detalhes de seus pouco desvendados sonhos - "Logo, sequer, lembrarei-me deles."
Sabia o quão perigoso pode ser um simples acordar. Desembaraçava a mente com auxílio de um pente e condicionador. Seriam seus frágeis fios espalhados pelo chão sinal de que até o que está na intocabilidade de sua mente condena-se a ser passageiro?
Pegou a toalha e, antes de enxugar-se, cheirou-a. Não possuía mais o cheiro de outrora, não possuía teu cheiro.
Rebeca esforaça-se para lembrar-se de ti. No entando, a cada noite que passa, uma nova manhã chega e, sutilmente, leva teus últimos sinais para junto da água suja de seu corpo, para o encanamento do condomínio Veríssimo, para os esgotos de Maceió, para algum rio ilegalmente invadido pela poluição urbana e, finalmente, deságua no oceano. Onde permanece.
Assim, afastas-te de Rebeca. Ela procura uma última lembrança do bravo homem que um dia a acompanhou buscando em um espelho a imagem da garota que um dia fora tua. Não reconhece a mulher que vê.
-Já não sou mais eu...
E pinga três gotas de leite em seu café artificialmente adoçado, pois é o único pensamento que insiste em invadir sua mente no momento.


-Maria.