Tenho vontade de sair de casa vestido em pijama xadrez mesmo, e distribuir gratuitamente abraços afetuosos aos pedestres. Dizer a eles, "vejam, a vida está aí, e não fazemos por merecê-la, vamos vivê-la, meus caros, vamos ser." Não posso: serei considerado um estrangeiro de minhas faculdades mentais. Ou um drogado. Tudo bem.
Há outras formas de ser melhor.
Lavar a louça, por exemplo. Os copos, os talheres, os pratos, as pequenas vasilhas de inox. Tudo tinindo, brilhante como novo. Ponho-me a observar a espuma do detergente de maçã, tão branca, e as minhas faces, milhões de vezes refletidas na lisa superfície das bolhinhas. Como eu amo fazer bolhas de sabão! É tudo tão nostálgico, e simples, e bonito! Inocente.
Continuo o processo. Enquanto percorro o pano seco sobre os utensílios, imagino que será de minha tarde de hoje. Gostaria de sair um pouco, conversar. Mas vivemos num tempo em que as pessoas já não têm tempo para jogar conversa fora; matar tempo. Hoje, temos que resolver nossos tantos problemas do cotidiano, temos que correr atrás de tudo... Correr atrás do tempo. Hoje, ele é que nos destrói. Ou nós mesmos?
Não importa. De qualquer forma, também eu tenho tanto que fazer!
Não haverá tempo para ser melhor.
Ainda preciso arrumar a casa. Varrer os tantos milímetros de poeira que denunciam minha inadimplência de ontem. Ando pelos cômodos e me esqueço de observar alguns detalhes: o design da cama de solteiro, o trabalho da torneira da pia, o brilho do vidro na mesa de jantar. Os rostos das fotografias penduradas pelas paredes. Não os reconheço mais. Será a ação do tempo? Mais uma vez, ele me passa para trás. Corrói a tinta das imagens, corrói as imagens de minha mente. Por que pensar nisso agora, se ainda há tanto pó para se espanar?
Recolho livros do chão, que há muito já não leio. CDs que há muito não ouço. Roupas que há muito não me servem mais. Guardo tudo em seu respectivo lugar. Deixo a claridade do dia entrar pelas janelas, mas já não há claridade. Caiu a noite. Tranco a porta da frente, contemplo e avalio a arrumação recém-completa. Com a casa organizada, consigo pensar melhor.
Mas aí meu dia já se acabou, a louça se lavou, minha casa se arrumou, mas meu pensamento, que fim levou?
Continuo aqui, fora dos meus padrões, como um alheio de si. Continuo tentando achar respostas, mesmo sem saber quais as perguntas. Continuo soluçando, mesmo com o copo d'água a meros quatro metros de meus dedos.
Continuo sem saber o que fazer hoje à tarde.
E a tarde, coitada, já se tornou crepúsculo.
*
Voss.
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ResponderExcluir"Mas aí meu dia já se acabou, a louça se lavou, minha casa se arrumou, mas meu pensamento, que fim levou?"
ResponderExcluirDa perfeita dinâmica da mecânica desconhece os sentimentos!
Muito bom texto! Parabéns!!!
Roldan Alencar