segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Relato de um Delírio Febril

   Era eu mesma, embora um pouco mais negra que o usual, em uma Belo Horizonte antiga. Era também deficiente física, do tipo que usa acessórios de hóquei para a locomoção impossibilitada pelas pernas atrofiadas. Caminhava tranquila em direção ao semáforo, em direção ao ônibus que eu tomaria, caso chegasse a tempo.
   Não cheguei a tempo. A pressa de meus passos e a paciência do motorista não me foram suficientes. Foi quando comecei a flutuar.
   Era eu mesma - aquela que, em delírios anteriores, quando em uma tentativa de suicídio, ao se jogar de um penhasco, só conseguira planar por sobre os montes japoneses. Era eu mesma - aquela que, em delírios anteriores, ao morrer atropelada por um automóvel de coloração escura, encontrara o paraíso como sendo um prédio inundado por águas termais, onde velhinhas em seus maiôs tomavam chá com seus netinhos. Era eu mesma - aquela que, em delírios anteriores, vivera em campos de lavanda, tomando os amigos pelas mãos e convencendo-os de que eles eram capazes de voar comigo, embora muitas vezes o peso-pessimismo de alguns me deixavam em terra. Era também eu mesma - aquela que, em delírios anteriores, ao ser atacada pelo machado de um lenhador, conseguira levantar vôo por tempo suficiente para sobreviver. Era eu mesma - aquela que, não pela primeira vez, voava : Finalmente reconheci algo de familiar em mim.
   Coloquei, então, as peças de hóquei sob meus pés, e percebi que, como os skatistas que passeavam pelo fim de tarde de Belo Horinte, podia também eu manobrar pelos ares. Ainda, aproveitando minha extrema sensação de liberdade, decidi não seguir o ônibus para chegar ao meu destino, como seria o mais racional, mas aproveitar minha baixa desidade para conhecer praças, hotéis, fontes e shows.
   Era eu mesma - uma forasteira. Uma deficiente sendo transportada por meios ilícitos e muito divertidos. Sentia o vento úmido bater em minha face como mil beijinhos leves e molhados. Foi quando encontrei, no banco de uma das históricas praças de BH, O Juiz. Pronto para me multar. "Passando o sinal vermelho, heim?" ou "Desrespeitando os pedestres, há?".
   Era ele - aquele que, quando em um bosque fechado, tentara me atacar com seu machado. Era ele - aquele que, com seus discursos matemáticos e Schopenhaurianos, convencia garotas de que voar é impossível para os humanos. Era ele - aquele capaz de inundar o paraíso, embora incapaz de torná-lo um lugar desagradével. Era ele - aquela idéia contanste de que existe uma realidade fria, da qual eu preciso participar.E foi exatamente isso que me aconteceu. Sem ao menos virar os olhos para a garota que flutuava em acessórios de hóquei sobre sua cabeça coberta por um luxuoso chapéu preto, O Juiz me fez, literalmente, cair - na realidade.
   Freud que me explique.



Roberta Brown.

Um comentário:

  1. ''Às vezes um pepino é só um pepino'' (Freud)

    Não, essa nem Freud explica ;]

    ADOREI!

    cecília

    ResponderExcluir