terça-feira, 31 de março de 2009
O piolho
Ele, o inseto, tão odiado. Ele sofre com seu hostage, mesmo sem que este saiba disto. Cada dor de cabeça chacoalha suas seis patas e duas antenas como se fossem cordinhas de marionete. Para ele, o mal visto parasita, as enxaquecas são terremotos intensos. Tremores de terra que quase o derrubam entre as placas tectônicas. Se não houvesse pele entre suas delicadas patinhas e os grandes blocos parietais, o pequeno transeunte se afogaria em lava de neurônios em revolução.
"Ah, digno locatário de habitação tão confortável! Por que se preocupa tanto assim?", pergunta o bichinho. "Que há no mundo dos humanos que mereça suas cefaleias tão freqüentes? Quanto tempo demorará para que termine de pintar minhas paredes de branco? Será que você não entende? Tenho sono, tenho filhos que sentem sono. Pare com essa trepidação antes que meus pequeninos lêndias caiam em alguma fissura temporo-occipital!".
Mas os homens não conversam com insetos. E seguem a atrapalhá-los e a se atrapalhar com problemas por vezes dispensáveis.
hallmark
sábado, 21 de março de 2009
quase amor
quase pela distância,
Enfim, separados por nós mesmos.
Triste o dia em que alguém
Me entregou o caração aberto
de mãos estandidas como quem oferece uma flor
E eu soube
que o devolveria em cacos,
recortados pedaços de um coração partido.
Meu primeiro, único, grande...
insano, insolúvel, inquebrável...
interminável, agonizante!
infinitamente cheio
de impossibilidades!
14/12/2006
alguém que não era eu.
terça-feira, 17 de março de 2009
oito de março
Botucatu, SP. Rua Visconde do Rio Branco, 898.
Minha cara,
Agora é finda aquela época. Não te arrependas do está feito. Tantas operárias queimadas morreram naquela fábrica dos diabos, e agora tens um dia só teu. Agradece a elas, mulher. Diz obrigada à Maria da Penha. Não esquece a determinação dessa pobre companheira que dá nome à lei que te protege. Aceita de uma vez a nova era em que vives. Aprende a dividir-te em duas, três, quatro, mil! É tempo de acostumar-te...
Pensas que és tão inteligente, não? Por acaso imagina que herdastes a genialidade de Marie Curie? Só porque sabes agora fórmulas, leis, teorias novas, não quer dizer que conheces o segredo da vida. Provaste que eras capaz de produzir como um homem, de comandar outros homens até. E agora, és feliz? Tu, que vestes esse terninho escuro, julgas-te no direito de sonhar com o longo branco, véu e grinalda. Quanta audácia! Desperte-te dos sonhos de outra pessoa, mulher. Não és Madame Bovary, sabes disso. O amor não é perfeito; tuas paixões estão fadadas ao fracasso.
Tu trabalhas com a dedicação de um camelo. Como vais encontrar teu príncipe com tua agenda cheia? Onde - céus!- ele deixará seu cavalo branco se teu carro zero ocupa a vaga da garagem? Ninguém vai querer-te, mulher. Não cozinhas boa comida. Tu não tens tempo para ir ao cinema, para tomar sorvete. Tens que limpar a casa, lavar banheiro, a louça, a roupa. Tens que fazer as unhas, o cabelo, depilar-te. Ah, se tivesses conhecido Amélia... Amélia era mulher de verdade. Amélia não tinha a menor vaidade.
Tu dizes que te orgulha de tua independência. Sei, porém, que à noite choras escondido. Tua liberdade assusta os homens; tua liberdade afasta-te de teus filhos. Não é que não gostas da vida executiva que levas, sei bem. Mas tu querias ter tempo para vier todas as tuas vidas completamente, não é? Ser ao mesmo tempo a mulher de negócios, a senhora do lar, a esposa exemplar, a mãe de família, não é fácil. Contudo, foi tua escolha, mulher. És livre: agora encara o mundo de frente!
O valor da mulher está no amor que ela é capaz de oferecer. O que fazer agora que amas teus livros, teu salário, tua independência, tua liberdade? É capaz de amar ao mesmo tempo teus filhos, tua casa, teu marido, teus deveres domésticos ainda com o mesmo fervor? Abandona tuas ilusões mulher. Não há tempo para ser sensível: absorve o desprendimento e a ousadia de Leila Diniz. Ah, vida radioativa... Vais acabar morta como Marie Curie, mulher: por tuas próprias realizações.
Atenciosamente,
rebeca.
quinta-feira, 12 de março de 2009
Para José
O que eu nao consigo compreender, José, é porque voce quer me escrever apenas mais uma página e não continuar sua trama. Fico agora ansiosa, esperando pelos próximos capítulos, próximos fatos, os quais cada dia mais demoram para vir. Minhas linhas, minhas margens estão atrapalhando seu processo de criação? Sou exatamente a mesma durante toda a minha extensão. O que aconteceu com aquela inevitável necessidade inicial de escrever? Era o meu cheiro de papel recém encadernado que o motivava?
Observo os outros cadernos da estante: rabiscados, mal cuidados, encapados, incompletos, cheios de outros papeizinhos, molhados até abandonados. Não sei qual a sensação se ser um caderno de estudos, ou uma agenda. Mas você me começou uma história. E eu estou ansiosa pela sua continuação.
Sabe, só de pensar que um dia você vai me esquecer ou não conseguir mais me continuar, já me desespero. Me desespero também ao pensar que você possa transformar essa linda comédia que me vem escrevendo em tragédia.
Me sinto mal também ao ativar meu senso crítico e perceber que ter lhe transformado em escritor foi uma idéia absolutamente autorizada por mim. Minha submissão a voce por exercer simples papel de livro me abala ainda mais, pricipalmente por saber que parcela da culpa do meu sofrimento provém, em partes, de mim mesma.
Aaah, José, se você soubesse o esforço que eu faço para te inspirar, colocar minhas idéias em sua mente e esperar que você as transcreva em mim, conheça minhas vontades e faça de minha palidez a palidez mais bem escrita já conhecida pelos homens... Se você soubesse do meu esforço mudo para te fazer feliz ao me escrever... Se você tivesse pelo menos idéia da minha satisfação ao vê-lo escrever com carinho e, com seus olhos inteligentes, me flertar como se me agradecesse por algo que seu lado racional por completo atribui a glória apenas a si mesmo...
Alguns escritores dizem que não escreveram sua obra, mas que a própria obra se escreveu através dos punhos do escritor. Sei que não é nosso caso. Você me escreve de acordo com suas vontades, suas idéias, seu humor. E eu fico aqui, esperando que algum dia eu possa entrar em você da mesma forma que um dia você entrou em mim para que, assim, ao continuar a sua escrita, você me despeje não o que lhe surge ao acaso, mas o que nos brota espontaneamente, como dupla, como cúmplices.
Sonia Maria Lima da Rosa
quarta-feira, 11 de março de 2009
À procura das "chaves de Drummond"
----Tivera meu primeiro contato com a magia das palavras nos meus doces verdes anos. Naquele tempo, descobrira, nas palavras de minha tia, a poesia sinestésica de Cecília Meireles, que me guiava na descoberta fantástica de um mundo novo aos meus inocentes olhos. A profusão de sentidos inundava-me de efêmeras sensações, coloridas e saborosas como balinhas de frutas sortidas. À medida que aprendia a tarefa áruda da leitura e escrita, minha comunhão com as palavras tornava-se mais íntima. Vejo agora que eu era, como Manoel de Barros disse, uma apanhadora de desperdícios. E, como fraseadora, adubava meus primeiros poemas no jardim florido de minha casa, e colhia versos de criança: simples, mas ausentes de regras.
----Crescera. Aventurara-me em outros livros, de distintos gêneros, mas com igual encanto fora desvendando narrativas e crônicas. Não que as compreendesse: na ausência de sentido - ou melhor, de compreensão - residia o mistério e a beleza dos sons, de adjetivos marcantes e complexos raciocínios de difícil interpretação. Hoje sei que não as entendia, mas a obscuridade, de uma certa forma, abria-me os olhos para o desconhecido.
----Porém, fora no ginásio que ocorrera o episódio que alterara os rumos de minha jornada como leitora. Recordo claramente, no meu primeiro dia, na primeira aula de literatura, do poema "Procura da poesia", de Carlos Drummond de Andrade, proferido pela minha mais nova mestra: "Olha e contempla as palavras: elas têm mil faces secretas sob a face neutra (...) e te perguntam (...) trouxeste a chave?". Contudo, não foram somente os belos sons e sensações que ficaram. Com habilidade, minha mestra colocara os versos à luz da compreensão, "desmatando as selvas de minha ignorância", como disse o poeta. O poema me desafiava a procurar as chaves do conhecimento a fim de buscar a essência intrínseca das palavras, ocultas por subjetivas e desafiadoras faces neutras. Parti, portanto, munida de lirismo - e porque não dizer de amor? - à procura das ''chaves de Drummond".
----Após esse acontecimento que ampliara meus horizontes, uma nova literatura mostrou-se diante meus olhos. Viajei por mares nunca dantes navegados, conheci infernos dantescos e paraísos celestiais; fui testemunha da bravura de Peri e de cruéis navios negreiros em espumas flutuantes; vi o realismo de Machado despir os românticos e os modernistas corajosamente quebrando regras senis; senti na pele a rosa de Hiroxima, "sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada"; e até mesmo deparei-me com pedras no caminho. Aprendi que "cabe a mim pontuar minha própria vida". E continuar com o lirismo. Afinal, navegar é preciso.
Redação do vestibular de verão 2009 da UFMS.
C.
segunda-feira, 2 de março de 2009
A rua dos meninos
Mal sabe essa gente que a maioria dos meninos de rua não sabe ler. Nunca foram à escola, nem mesmo têm onde morar. O futuro para garotos do asfalto é incerto demais. Suas opções se restringem a virar bandido ou ajudante de bandido. Essa é a lei da rua: sobrevive o mais forte, o mais esperto, o mais rápido, o que tem mais sorte. Mas, ah! se essa rua fosse minha...
Se essa rua, se essa rua fosse minha, tiraria todos os meninos de lá. Colocaria cada um em uma cama confortável, com um livro na mão. Ensinaria a ganhar dinheiro sem roubar, a receber salário por um trabalho bem feito. Coisa que a iniciativa pública e privada já deveriam estar fazendo. Afinal, essas crianças são humanas e merecem ser tratadas como tal! Até cachorro tem vida melhor!
Sem meninos nas ruas, sem a nova geração de assaltantes, sequestradores, traficantes e ladrões largados por aí, minha rua seria mais segura. Se essa rua fosse minha, andaríamos desprotegidos a qualquer hora sem medo; e ainda com a certeza de que os garotinhos que limpavam pára-brisas e cuidavam carros fariam um país melhor, já que seriam pessoas melhores.
Existem tantas crianças esquecidas pelo governo e pelos cidadãos que nem sei como cabem nas ruas. Pequenas sementes de uma planta chamada futuro, sem água... sem luz... sem chão. Eu faria uma rua ladrilhada, não com pedrinhas de brilhante, mas cheia de esperança. Mas essa rua não é minha. E os meninos não são de ninguém.
Rebeca
domingo, 1 de março de 2009
Sufoco
Corpo difuso que vira abstrato em espelho. Uma taça de vinho que chora em um canto, cinzeiro transbordando em cinzas. A chuva dança sobre os vidros da janela, os lençóis estão amassados em um canto, o som velho arranhava alguma canção de Neil Young, enquanto ela observava o ventilador rangendo no teto, e ele dormia como uma criança. Levantou-se em busca de um sentido, no quarto iluminado apenas por um abajur velho. Deu alguns passos e notou uma frase na parede “não, solidão, hoje não quero me retocar”. Continuou dando voltas nas pontas dos pés enquanto lia cada frase solta na parede. “Suas ilusões vão te destruir, destruir, destruir”, e o quarto dava voltas, e o mundo instantaneamente tornou-se um só, de súbito veio o sufoco, a agonia, os pés perdem o próprio equilíbrio, a chuva pára a própria dança, os lençóis mudam de lugar, uma canção com guitarras pesadas começa, o cinzeiro vira cacos, a taça volta à sua posição original, o quarto passa a exalar cheiro de roxo, o espelho reflete um corpo que descansa inconsolável sobre o carpete velho.
"não, solidão, hoje não quero me retocar.."
Anne Pearson